Hoje, dia 26 de setembro, é comemorado o Dia Nacional do Surdo. A data representa uma oportunidade para relembrar os desafios e as lutas por melhores condições de vida das pessoas com deficiência auditiva. Por isso, decidimos compartilhar um texto muito especial da Letícia Tôrres Costa, que é deficiente auditiva e compartilha conosco as suas experiências. Confiram!
Ouvinte é como são denominadas pela comunidade surda as pessoas que não são surdas. Meu mundo é bem ouvinte e quase nada surdo. O meu marido é ouvinte, a minha família é ouvinte, os meus amigos são ouvintes, trabalho com ouvintes e, resumindo, a vida fora de mim é ouvinte. Meu eu, no entanto, é surdo. Para evitar problemas de comunicação e prejulgamentos sobre mim, sempre procuro explicar minha condição a quem acaba de me conhecer. Normalmente, falar sobre isso gera uma avalanche de perguntas. É assustador como a maioria das pessoas com quem converso sabe pouco ou quase nada sobre surdez e Libras – e, quando pensa que sabe, acaba descobrindo que não.
Certo dia, numa reunião com um gerente de contas das redes sociais de uma livraria, perguntei quais elementos tornavam as páginas dela acessíveis. Ele relacionou alguns itens de acessibilidade para cegos e pessoas com baixa visão. Indaguei sobre acessibilidade para surdos, e a resposta foi:” Bem, está tudo em português, então eles podem ler”. De todas as situações com as quais já me deparei, a que mais me preocupa é a crença dos ouvintes de que o português é ferramenta de acessibilidade para o surdo.
Vamos entender por que não?
Primeiramente, iremos, por favor, banir o termo ” surdo-mudo” dos nossos dicionários. Na comunidade surda no Brasil. existem surdos oralizados e surdos libristas. Os primeiros, como eu, fizeram acompanhamento com fonoaudiólogos e foram treinados para aprender a falar. No meu caso foram quase dez anos de orientação fonoaudiológica. Qualquer surdo pode aprender a falar, e existem mecanismos para isso, como sentir as vibrações sonoras que ressoam em partes do nosso corpo ( caixa torácica, nariz, garganta, bochechas). Na realidade, é um processo muito desgastante, mas possível. Os libristas comunicam-se somente por meio da língua de sinais brasileira e não se apoiam no uso de nenhuma língua oral: a língua materna deles é a de sinais. Dessa maneira, os surdos aprendem o português como uma segunda língua, assim como aprendem o inglês ou o francês os ouvintes que falam português. A Língua de Sinais Brasileira (LSB) não é como o Braille – um código que representa e traduz o português -, mas um organismo vivo: uma língua com distância linguística substancial do Português Brasileiro (PB).
Vários pontos corroboram para o abismo entre a LSB e o PB, como as divergências encontradas em suas concepções linguísticas, lexicais, gramaticais e estruturais. Vejamos algumas dessas diferenças.
Nas línguas naturais, a relação entre as palavras e as coisas é convencional, arbitrária. Por que a palavra garfo representa o material de garras com o qual se come? Por que as letras e o som da palavra garfo faz você pensar nesse objeto? Em algum momento e de alguma forma, convencionou-se que a sequência de sons da palavra garfo designaria aquele objeto de garras com o qual se como, e não uma cadeira, aquele móvel no qual nos sentamos. As línguas naturais apresentam também o fenômeno da iconicidade. Quando digo que cachorro faz “au-au”, e relógio faz “tic-tac”, existe uma motivação sonora associando as palavras e as coisas. A LSB é mais icônica do que o PB, e nesse ponto reside uma sensível diferença entre eles, apesar de a primeira também possuir sinais arbitrários. E a iconicidade dela, é claro, não é baseada em motivação sonora, mas em motivação espaço-visual*.
Assim, o PB é uma língua oral que se manifesta por meio da escrita e da oralidade, ao passo que a LSB é uma língua espaço-visual que se manifesta por meio de sinais compostos por configurações de mãos, movimentos, expressões faciais, locais do corpo onde o sinal é produzido, e orientação da palma da mão. Partindo dessas premissas, é possível perceber que os usuários das línguas espaço visuais e os usuários de língua oral expressarão seus pensamentos e sentimentos de maneiras extremamente distintas.
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O compartilhamento mais significativo da LSB e do PB está no léxico. Porém, enquanto este tem idade quase milenar e mais de 200 mil palavras, aquela tem menos de dois séculos e uma quantidade infinitamente inferior de sinais. Imagine ler um texto de alta complexidade em uma língua que não é a sua. Você não teria dificuldade com o vocabulário? Assim se sentem os surdos frente ao português.
No artigo” Introdução à gramática de Libras“, Felipe (1997,p.95)** explica que na LSB ” não há marca de tempo nas formas verbais; é como se os verbos ficassem na frase quase sempre no infinitivo. O tempo é marcado sintaticamente através de advérbios de tempo”. A frase Nós iremos para casa amanhã? seria traduzida pela sinalização ” Amanhã+ vamos+ casa+ expressão facial de dúvida”. A LSB tem uma gramática própria de línguas espaço-visuais e, por isso, não conta com vários elementos exclusivos de línguas orais, como artigos e preposições.
Quanto a sua estrutura, a LSB é uma língua naturalmente topicalizada, enquanto no PB a ordem natural é SVO ( sujeito+verbo+objeto). Em uma frase como “Ontem faltei aula” a ordem da sinalização seria ” Ontem+ aula+faltar”.
Existem estudos *** que comparam os erros cometidos nas escritas produzidos por surdos e ouvintes cujo português é a segunda língua. Os especialistas identificaram que eles, além de adotarem estratégias parecidas para errarem menos – como escrever frases curtas e sem conectivos – , cometem deslizes bem similares.
Ao evidenciar essas diferenças, espero conseguir conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre as muitas dificuldades do surdo com relação ao português e jogar alguma luz sobre o abismo que separa o mundo dos surdos e o dos ouvintes. O preconceito sofrido pelos surdos é enorme, e isso cria uma forte resistência de aceitação da língua majoritária. Ser surdo librista é viver como um estrangeiro no seu próprio país e ser obrigado, diariamente, a enfrentar barreiras de comunicação naquela casa que deveria ser a sua também.
* A Língua de Sinais Brasileira, como o gentílico já diz, não é universal – existem línguais de sinais americana.
**FELIPE, Tanya A. Introdução à gramática da Libras. In: BRITO, Lucinda F. e al. (Org.). Língua Brasileira de Sinais. Brasília:SEESP, 1997, v.3. p.81-107. ( Série Atualidades Pedagógicas, n.4). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002297.pdf . Acesso em: 8 set. 2017.
*** Ver, um exemplo, UM OLHAR sobre o texto do surdo. In: SALLES, Heloísa Maria Moreira Lima et al. Ensino de língua portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Brasília: SEESP, 2004,v.1.p. 118-133. ( Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos).
Nossa! Não tinha noção desta dificuldade! Texto muito esclarecedor.
Parabéns e obrigado por compartilhar.
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Indico o livro Vendo vozes – uma viagem ao mundo dos surdos, de Oliver Sacks. Parabéns por este post.
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Obrigada pela indicação!!! Um abraço
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Texto muito elucidativo. Parabéns a vocês duas!
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Obrigada pelo carinho!! Um abraço
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Muito lindo o texto da Letícia. Ele está na íntegra? gostaria de recebê-lo no meu e-mail.
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Oi Sâmia, vou verificar com a Letícia, pois creio que ela enviou uma versão adaptada para o blog. Qual é o seu email?
Um abraço
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