Livro: Como brincam as crianças com autismo

As crianças com autismo sabem brincar? Essa é a pergunta que as pesquisadoras Maria Angélica e Daniele Nunes, sob a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, tendo Vygotsky como seu expoente, visam responder nesta obra. E nos mostram por meio dados empíricos que sim, a criança com autismo brinca e imagina.  Para tanto, as autoras enfatizaram o brincar de faz de conta, focalizando o desenvolvimento dos processos de simbolização no uso de brinquedos ( objeto pivô) e na configuração dos jogos de papéis.

Considerando a brincadeira uma atividade relacionada ao desenvolvimento das funções superiores, pesquisadores têm se dedicado à investigação dos processos lúdicos em crianças com autismo. Contrariando as pesquisas clássicas em psicologia, defendem que a criança com autismo brinca; constrói objetos-pivô; e apresenta indícios de assunção de papéis.

Bagarollo, por exemplo, parte da premissa vigotskiana de que a brincadeira representa um aspecto central ao desenvolvimento infantil. Pesquisando crianças com autismo no foco de suas possibilidades imaginativas, ela conclui que

para haver tanto a possibilidade de interrelação entre sujeitos autistas e as outras pessoas quanto à constituição do brincar e, consequentemente, das outras funções mentais, é necessário que o outro da relação proponha contato, insista, chame, faça-os perceber os outros e os objetos do mundo, sendo imprescindível então, estabelecer a mediação necessária para haver instituição das relações sociais e a constituição do brincar.

A pesquisadora revela que o não brincar da criança com autismo está relacionado à falta de experiência e de acesso aos brinquedos e/ou às brincadeiras, e não simplesmente aos impeditivos orgânicos. Para ela, os pares imediatos ( familiares, professores e/ou colegas) da criança desistem de tentar uma brincadeira ou apresentar-lhes um brinquedo, pois acreditam que ela é incapaz de imaginar. Configurando uma privação do lúdico, que repercute negativamente no desenvolvimento dessas crianças.

Para Martins (2009) apud Silva e Silva ( 2019), as dificuldades apresentadas pela criança com a autismo não estão associadas ao fracasso na interação com os pais e/ou pessoas mais próximas. Porém a forma como as pessoas próximas reagem à sua falta de respostas e contato, certamente afeta o desenvolvimento da criança, muitas vezes cristalizando o quadro já instalado. A pesquisadora constantemente interagia com as crianças com autismo, nomeando e descrevendo minuciosamente brinquedos e brincadeiras. Ela buscou construir sentidos para as ações, além de encorajar a participação das crianças no jogo, especialmente o faz de conta.

Contrária às concepções que compreendem o autismo como uma incapacidade, Chiote (2013 e 2015) apud Silva e Silva ( 2019) defende também a importância de se ater às possibilidades imaginativas da criança com autismo centralizando o papel do outro na significação do mundo para ela. Nesse sentido, ela compreende a brincadeira como uma atividade que se aprende a partir do outro, por isso é necessária ” a criação de condições para que a criança com autismo amplie suas experiências de brincadeira na relação com seus pares”.

Outro questionamento que as autoras do livro fazem é: o que constitui o brincar da criança com autismo em idade pré-escolar? Num desdobramento, quais são os recursos simbólicos que ela utiliza para significar as ações lúdicas no uso dos brinquedos e na assunção de papéis?

Para responder a essas perguntas, foram realizadas 3 oficinas de brincadeiras com crianças com autismo:

  • Oficina A cesta mágica – com o intuito de ampliar as situações simbólicas, as autoras decidiram levar uma cesta composta por blocos de encaixe, massinha de modelar, bola, utensílios domésticos em miniatura, kit de beleza, bichos em miniatura, entre outros para a sala de aula. As crianças escolhiam do que brincar, como brincar e com que brincar.
  • Oficina de Piratas – foi criado um cenário imagético com o tema ” Piratas”, composto por um barco de pirata usando uma caixa grande de papelão com bandeira, papagaio, caveira, âncora e gotas de água na proa.
  • Oficina de Personagens – foi oportunizado às crianças contato com diversas fantasias ( roupas) de personagens infantis.

Pôde-se observar que a relação entre o brinquedo, a experiência alteritária, a emergência da linguagem e o alargamento da experiência simbólica não é característica apenas da criança com autismo; isso também se verifica na criança com desenvolvimento típico. O que distingue uma situação da outra é que, na criança com autismo, a emergência desta condição ( enredo) lúdica não é claramente nem rapidamente perceptível; não é fluida, pois acontece de forma qualitativamente diferenciada, se comparada. De fato é preciso educar os olhos para ver as crianças com autismo brincando.

Ao longo da análise, foi evidenciada a emergência de processos sofisticados de simbolização nas crianças com autismo. Tais momentos não ocorreram da mesma forma, com a mesma intensidade ou quantidade, quando comparamos com as crianças com desenvolvimento típico. Mas não podemos afirmar que não há refinamento simbólico no funcionamento lúdico da criança com autismo.

As autoras analisaram também os sofisticados e complexos processos simbólicos durante a atividades desenvolvidas pelas crianças pesquisadas por meio do jogo de papeis nas brincadeiras de faz de conta.

A partir das experiências vivenciadas e dos dados obtidos, as autoras defendem a necessidade de mediações bem conduzidas no que tange ao jogo de papéis no faz de conta para promoção do desenvolvimento da criança. O educador, por exemplo, tem que saber o porquê de escolher determinadas mediações em detrimento de outras na brincadeira; quais são os aspectos desenvolvimentais que estão em jogo e que ele quer explorar criativamente. Quais os interesses das crianças, como abordá-los sem sair da fantasia, mas sendo tomado pela imaginação.

As autoras afirmam, ainda, que buscaram articular diferentes dimensões da situação imaginária: a cenografia, o jogo de papéis – representar o outro -, o papel do mediador – brincar com o outro etc. Todos esses aspectos revelam como a vivência lúdica é fundamental para o desenvolvimento de qualquer criança com autismo, pois sem a potência da imaginação, ela fica submetida a negatividade de seu diagnóstico. Focar na imaginação ( na criação) é o que possibilita libertar-se das amarras físicas e situacionais – e essa premissa vale para qualquer criança.

O conteúdo desta obra é realmente muito enriquecedor e pode ser muito útil para  pedagogos, psicólogos, professores e até mesmo para os pais motivando-os a continuarem na busca por rotas alternativas no desenvolvimento para as crianças com autismo e como as autoras defendem ” o faz de conta é um caminho potente no qual possibilita à criança (re)apreender o mundo, (re) encontrar o outro e (re)conhecer a si mesma“.


Fonte:  Silva, Maria Angélica da. Silva, Daniele Nunes Henrique. Como brincam as crianças com autismo – Campinas/SP: Mercado de Letras, 2019.


 

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